A POÉTICA DA NÁUSEA, A NÁUSEA DO POÉTICO

Projeto Mímesis
17 min readMar 29, 2021

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Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A FLOR E A NÁUSEA, de Carlos Drummond de Andrade

Quando falamos em poesia, já se tornou um lugar comum reproduzir certos discursos sobre como o gênero lírico representa a expressão literária de maior teor subjetivo, no sentido de ser o poema aquele texto que enfocaria tão somente os sentimentos e as emoções de um sujeito em específico. Se essa narrativa sobre o poético carrega alguma verdade, é preciso, primeiro, arrancá-la de seus ares idealistas e colocá-la em relação à história. Não é possível pensar o espaço da subjetividade sem recorrer, antes, as relações sociais que a antecedem e que possibilitam a sua emergência e as suas manobras de singularização em cada indivíduo. É por entre essas reflexões que o filósofo Theodor Adorno, em sua ‘Palestra sobre lírica e sociedade’, faz-nos pensar que a aparência de extremo “subjetivismo” na poesia da modernidade possui, de fato, um profundo enraizamento nas contradições da sociedade capitalista. Adorno aponta para o fato de que individualidade e universalidade entram em confronto intenso na poesia moderna, pois o poeta de nossa época é o poeta que se depara com o individualismo absoluto da sociedade capitalista e, portanto, se responde na linguagem do isolamento, é para expressar seu descompasso com o todo social e para convocar o Outro (nós, leitores) a ecoar sua solidão e dar assim sentido ao nosso próprio sentimento de estar sozinho em um mundo tão avesso aos sentimentos de pertencimento e de comunidade.

Para seguirmos com esse debate e aprofundá-lo em suas nuances, proponho um exercício: façamos a leitura e a análise de um poema bastante emblemático de nossa literatura, “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, para observar como o eu lírico[1], entendido nesta interpretação como um poeta, em sua expressão, possibilita-nos vivenciar esteticamente algumas das contradições do fazer poético na sociedade capitalista. Às cinco horas da tarde, na capital do país, seguiremos a sombra do poeta e deixaremos ressoar o que seus versos têm a nos dizer, ou, mais especificamente, deixaremos ressoar o que o poético nos diz sobre lugar da poesia no mundo em que vivemos. Para isso, é preciso fazer mais um pequeno preâmbulo que nos permite melhor localizar na história o texto com qual vamos dialogar. O poema “A flor e a náusea” foi publicado no livro A rosa do povo, pela primeira vez em 1945, ou seja, logo ao fim da experiência da Segunda Guerra Mundial. O poeta expressa-se, portanto, diante de um mundo em pedaços e em que as forças dominantes esforçam-se para reestruturar os discursos que manterão a “justificativa” de reprodução de uma sociedade que já nasceu de um banho de sangue. Mas, além disso, é preciso pontuar, o poeta não se expressa sobre essa conjuntura de qualquer lugar: Drummond escreve a partir do Rio de Janeiro, do Brasil (sob a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas) e da América Latina e, individualmente, de um período de sua vida em que se aproxima do Partido Comunista Brasileiro, escrevendo, portanto, de um lugar de flerte com as ideias revolucionárias do marxismo e de um Rio de Janeiro em modernização crescente aos moldes de um país dependente no sistema capitalista global. É dessa espacialidade e dessa temporalidade grávidas de contradições que emergem a flor (o poético, a possibilidade de criação e de mudança) e a náusea (esse mal estar crescente diante de algo que, ao mesmo tempo, atordoa-nos e impulsiona-nos ao trasbordamento daquilo que nos provoca desconforto).

Preso à minha classe e algumas roupas,/vou de branco pela rua cinzenta./Melancolias, mercadorias espreitam-me. O eu lírico não poderia ser mais condizente com o marxismo: a primeira informação que nos dá sobre si (portanto, a ênfase que dá na construção de sua identidade diante do leitor) é o seu lugar de classe. Ele não nos diz a qual classe exatamente pertence, mas nos direciona a ela quando inicia seu verso com a ideia de aprisionamento e com a vagueza com que especifica sua vestimenta. Se se sente preso a uma classe, é porque evidentemente carrega essa condição como um fardo, ou seja, pertence aos 99% da população que não detém os meios de produção da sociedade, e, por consequência, não carrega nada mais do que algumas roupas, pois também não é lícito a grande maioria da população trabalhadora usufruir do “luxo” de ter mais do que a roupa do corpo. Vai de branco, ele nos diz, pela rua cinzenta; o poeta é, portanto, um vulto de gradação dissonante diante da selva de concreto e de artificialidade do grande centro urbano. Mas não deixa, por isso, de soar anônimo, mais um sujeito no interior da multidão, flâneur[2] dos trópicos, visto que o branco não está assim tão distante do cinza. Isso nos faz evocar Walter Benjamin em sua paradigmática análise da poesia do poeta francês Charles Baudelaire, em que o filósofo desvenda um verdadeiro tópos[3] da experiência do fazer poético no grande centro urbano. Nessa interpretação, o poeta moderno é aquele que se vê engolido pela multidão da cidade, tornando-se cúmplice de sua formação ao deixar absorver-se e atrair-se por essa massa de pessoas sem rostos que atravessam a cidade, ao mesmo tempo em que se afasta dessa multidão, rejeitando-a com algum desprezo por sua inumanidade. É, enfim, o descompasso do sujeito poeta profundamente só, mesmo que cercado por muitos, cultivando um olhar ambiguamente distanciado e familiar em relação à sociedade que o cerca.

O eu lírico poeta é atormentado pelo peso das melancolias e das mercadorias, palavras que são pronunciadas com sons tão parecidos que nos tentam a aproximá-las em sentido. Ser poeta não o salva, muito pelo contrário, da mística contraditória das mercadorias que ressoa de todas as vitrines ao seu redor, fazendo de seu caminho um percurso por entre a alienação e por entre a inversão do lugar das coisas pelo lugar dos seres humanos (algo próximo do que Marx nomeou como fetichismo da mercadoria). Ainda Adorno, em sua “Palestra sobre lírica e sociedade”, comenta que faz parte da postura lírica na modernidade uma reação à coisificação do mundo, ao domínio das mercadorias sobre os sujeitos, que constrói uma realidade adversa às relações humanas, o que fica claro no poema aqui analisado. Devo seguir até o enjoo?/Posso, sem armas, revoltar-me? As perguntas soam retóricas. O poeta, em última análise, não tem escolha; elegeu para si (ou foi eleito pela sociedade) para ocupar um lugar de profeta de um mundo que ainda não veio e de valores que não podem mais existir. Seu caminho é o da vertigem das contradições sociais. Fazer poesia na modernidade capitalista é assentar-se num lugar paradoxal, é cantar a crise, a impossibilidade de comunhão social no mundo dado a partir de uma forma de expressão que surgiu como instrumento de unidade social na Antiguidade. Ele, sem dúvida, revolta-se e faz versos por isso, para escancarar a própria impossibilidade de seu fazer, mas está, sim, desarmado, pois enquanto sujeito isolado não pode transformar a sociedade e sabe que a luta no campo da cultura é necessária e relevante, mas que, sem uma revolução que reestruture o modo de produção vigente, não há completa reformulação da sociedade.

Olhos sujos no relógio da torre:/Não, o tempo não chegou de completa justiça./O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. De quem são os olhos sujos? Do poeta, cansado de observar o mundo que passa? Do próprio relógio, desgastado com o prolongamento de uma temporalidade histórica que tarda a ser superada? Quem sabe ambos. Mas o que importa mais é que o exercício do poeta parece inerentemente ligado ao tempo, os olhos do poeta e os olhos do relógio se encontram, confundem-se, porque compartilham um incômodo com a historicidade presente, pobre e injusta, ansiando por mudança: O tempo pobre, o poeta pobre/fundem-se no mesmo impasse. Aqui o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz nos auxilia em nossa leitura, ao defender, em seu livro Os filhos do barro, que é na Idade Moderna em que a contradição entre história e poesia se torna evidente, explícita na própria composição poética. A lírica moderna, portanto, é, ainda seguindo Paz, a lírica da paixão crítica, que faz do desejo de ruptura sua própria condição de ser. A racionalidade instrumental do mundo capitalista e a concepção de história dela decorrente, como bem criticada por Walter Benjamin, no célebre ensaio “Teses sobre o conceito de história”, é a ideologia de uma temporalidade ininterrupta e de um suposto progresso em direção a um mundo melhor, enquanto, de fato, deixa para trás um despojo de mortos. O tempo da poesia é outro, precisa ser outro, pois remonta a um princípio que se propõe anterior à essa concepção moderna e iluminista de história: a valoração primeira e mítica do mundo. Por isso, o poeta anseia um corte temporal para que possa se deter qualitativamente na existência humana e é por isso também que o eu lírico não consegue mais produzir sentido para a forma social hegemônica: Em vão me tento explicar, os muros são surdos./Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O primado da mercadoria não tem tempo para os dizeres do poeta, pois o poeta precisa parar o tempo, precisa da inutilidade e da preguiça, ou seja, apenas pode poetizar à contrapelo da lógica do capital (tempo é dinheiro): a racionalidade moderna etiqueta as coisas do mundo em artificiais cifras e códigos, a poesia requer o deslocamento dessas etiquetas, anseia subverter à categorização dada ao mundo, trava uma batalha pelos sentidos das coisas. O sol consola os doentes e não os renova./As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. O eu lírico lamenta o fato de que na imparável renovação do capital, não há nada de novo, sempre uma mesmice renovada que impossibilita uma fruição mais autêntica da vida. É por isso que precisa vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema/resolvido, sequer colocado. Ironicamente, o poeta interrompe o verso[4], dando a entender, em um primeiro momento, que passou uma vida isenta de problemas, quando, de fato, enfatiza que o mundo em que viveu, de tão inautêntico, nem ao menos o permitiu inquietar-se com a profundidade que exigiria a existência humana. Nenhuma carta escrita nem recebida. Sente-se sozinho e provavelmente incompreendido em sua revolta. A carta carrega uma expressão cuidadosa e afetuosa; diferentemente dos hipermodernos e-mails, é uma forma artesanal e confessional de escrita, mas, aparentemente, o poeta não encontra interlocutores. Todos os homens voltam para casa./Estão menos livres mas levam jornais/e soletram o mundo, sabendo que o perdem. E talvez, por isso, não encontre interlocutores… Os homens (e as mulheres) voltam mecanicamente para casa depois da rotina de trabalho e estão cansados demais, alienados demais, conformados demais. Menos livres, carregam jornais, sua dose diária de ideologia dominante que chega através da imprensa e auxilia na reprodução do modo de produção vigente. Não por acaso, o poeta ressalta os jornais, afinal, sabe que a literatura (e a poesia ainda mais) perde gradualmente espaço diante dos negócios hegemônicos da informação e da indústria cultural, ou se infiltra nesses apenas com o risco de certo esvaziamento de seu fazer. O que significa, então, insistir em fazer poesia diante de um panorama como esse? Um crime.

Crimes da terra, como perdoá-los?/Tomei parte em muitos, outros escondi./Alguns achei belos, foram publicados./Crimes suaves, que ajudam a viver. É possível fazer poesia depois de Auschwitz? Logo nos lembramos desse célebre questionamento de Adorno, que coloca em xeque a possibilidade de fazer arte diante da barbárie, mas será que a questão não deveria ser primeiramente: é possível fazer poesia depois da modernidade capitalista? Evidentemente que sim, porém, já estamos pensando em um sentido todo próprio do gênero lírico que agora exige uma cumplicidade dolorosa do poeta e do leitor diante da desumanização crescente das relações no mundo moderno. A poesia pressupõe o fantasiar e realiza, portanto, uma suspensão relativa do princípio de realidade[5] estabelecido para dar vazão ao princípio de prazer. Goza-se com a poesia e encontra-se nela uma forma de escoamento das tensões, mas, diante da barbárie do mundo, soa mórbido perder-se no belo, ou, ao menos, soa como uma forma de evasão. Ração diária de erro, distribuída em casa./Os ferozes padeiros do mal./Os ferozes leiteiros do mal. O eu lírico reconhece que há, sim, uma porção de ópio (retomando a famosa crítica de Marx à religião em sua Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel[6]) no fazer poético: o poema não sacia a fome do povo, não pode suprir as necessidades materiais de uma sociedade estruturalmente desigual, mas ilude a fome de uns e de outros que conseguem ter algum acesso à cultura letrada.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim./Ao menino de 1918 chamavam anarquista./ Porém meu ódio é o melhor de mim./Com ele me salvo/e dou a poucos uma esperança mínima. A partir da segunda metade do poema, é visível uma mudança de tom. Se as cinco primeiras estrofes são carregadas de um lamento melancólico que enfoca o que há de mais cruel para o fazer poético na modernidade, agora o eu lírico desloca sua posição inicial e aponta para a possibilidade de subversão. Começa por evocar o ódio — afeto tão estigmatizado no projeto da racionalidade moderna. O poeta assume o seu ódio, qualifica-o positivamente e encontra nele uma forma de esperança para si e para os outros. Aqui, o eu lírico retoma sua posição de classe ao demonstrar que o ódio dos dominados nunca possuirá a mesma valoração do ódio dos dominantes (esse sim repressivo). Se o poeta antigo canta a comunhão da coletividade e o poeta medieval canta o amor subserviente a Deus, o poeta moderno convoca o desconforto com a sociedade e, por vezes, como neste poema, convoca a revolta e a violência revolucionária (não por acaso o chamavam anarquista) para cantar a necessidade e a possibilidade de transformação. Assim, a esperança mínima de um novo mundo que nos possibilita o poeta não é a esperança ingênua e idealista de uma utopia construída pacificamente. E ele finalmente exclama depois desse deslocamento discursivo: Uma flor nasceu na rua! Eros (a força vital humana) perfura o princípio de desempenho, como Herbert Marcuse denomina especificamente o princípio de realidade da sociedade industrial[7], e possibilita a criação: a flor, que carrega, como símbolo, um histórico de sentidos que apontam para a fertilidade, para o feminino (como princípio organizador das coisas que contraria o modo patriarcal repressivo de organização social) e para a beleza, pode ser entendida, no contexto deste texto, como o próprio poético que surge ao eu lírico (e aos leitores) como possibilidade em meio à náusea da civilização. Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego./Uma flor ainda desbotada/ilude a polícia, rompe o asfalto. O eu lírico expele tudo aquilo que representa o processo de modernização e o aparato repressivo da classe dominante (a polícia). Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma flor nasceu. E, diante do poético que aflora na floresta devastada da linguagem instrumentalizada da modernidade, o eu lírico convida o leitor a esboçar a ruptura com a lógica social dada e, mesmo que por um instante, paralisar a essa tempestade que chamamos progresso, como diz Benjamin, e se deter qualitativa e criticamente no mundo.

Sua cor não se percebe./Suas pétalas não se abrem./Seu nome não está nos livros./É feia. Mas é realmente uma flor. Longe de ser inocente, o eu lírico poeta sabe das limitações de seu próprio fazer. O poético, na modernidade capitalista, é delicado e é frágil porque aflora em condições adversas. Primeiro, o poeta-autor não se sustenta por seu próprio fazer na divisão do trabalho social e, se não cumpre outra função de trabalho tido como produtivo, é um pária. Em segundo lugar, a ideologia dominante dita uma visão de mundo que se contrapõe ao valores qualitativos do poético e, se por acaso abre espaço para o discurso da “importância da poesia”, o faz de forma asséptica e hipócrita, da mesma maneira que genericamente se elogia à educação e à leitura sem dar espaço para o livre e crítico desenvolvimento dessas. E, por último, se se encontram leitores para a poesia, não raramente esses estão enclausurados em bolhas intelectuais nada orgânicas, sem se preocupar em criar pontes com o resto dos sujeitos na sociedade. Depois que os indivíduos são arrancados de sua infância (o espaço primeiro do poético) pelo princípio de realidade vigente, nunca mais têm acesso à poesia, ou têm acesso, no máximo, o que é um verdadeiro desfavor, a um discurso horripilante da impossibilidade de se entender (seja lá o que isso signifique) os poemas que emergem das nossas próprias relações histórico sociais. É, por isso, que a flor é feia e não está nos livros (e que isso não é um demérito): o poético que emerge diante do eu lírico precisa se distanciar dos lugares comuns dados ao poético — contraria o elogio puro e simples da suposta Beleza autônoma da poesia que mais esconde do que expressa o potencial real desse tipo de produção literária.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde/e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Na capital do país, o espaço mais movimentado nos termos da modernidade industrial e mais atrelado ao Capital, e às cinco horas da tarde, o tempo de rush em que todos vão e voltam pelas avenidas em seus veículos, o eu lírico senta-se no chão, contrariando a etiqueta dos “bons costumes” da elite urbana e aproximando-se daqueles que vivem no chão do país por falta de opção, e toma todo o cuidado para não desperdiçar a centelha de esperança frágil que surge à sua frente. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se./Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. Então, um sútil deslocamento de cenário que apresenta a contraparte do espaço tecnológico-industrial, a beleza natural do Rio de Janeiro, como um breve lembrete, que ressurge com o poético, de que o mundo nem sempre foi assim e que, portanto, não precisa ser assim para sempre. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. O poema termina tensionando os valores dominantes, remetendo a uma possível estética do feio como algo que possui potencial por não se confundir com o ideal de beleza imposto (e, portanto, de todos outros valores dominantes a ele atrelados) e demonstrando poeticamente que das próprias contradições surge um potencial para mudança, para transformação e para superação dessas mesmas contradições. O asfalto, o tédio, o nojo e o ódio (do dominante e do dominado, ainda necessário, visto que a luta de classes ainda não cessou), que constroem um panorama sócio-histórico dissonante para a poesia, não a impossibilitam, pelo contrário, provocam-na a necessidade de resistência, que se dá igualmente no plano da disputa pelos sentidos da história.

Em síntese, falando em resistência, como defende o crítico brasileiro da cultura Alfredo Bosi, em seu ensaio “Poesia-resistência”, o fazer poético na modernidade desencantada do capitalismo aloca-se na tensão latente entre a incapacidade de ser, como antigamente, a experiência estética mítica de dizer e de significar o mundo e o desejo utópico de projetar um lugar-outro não pautado por valores utilitários. A poesia resiste escancarando as contradições de nosso mundo e atrevendo-se a imaginar, ou, ao menos, a apontar, um novo mundo. Dessa forma, a poesia ensaia uma forma de transcendência simbólica, através de uma linguagem provocante e responsável por desacomodar os lugares comuns da ideologia dominante que pretensiosamente se autoproclama universal o suficiente para nos enfiar goela abaixo o “fim da história”. A náusea e a flor surgem juntas, lembrando-nos que no desalento e no desconforto reside um potencial revolucionário: o anseio inquieto e contagiante pela transformação, pela busca de algo mais do que o mundo insuficiente e insosso que herdamos.

Lucas Zafalon Garcia é mestrando em letras pela UFRGS

[1] Em teoria literária, normalmente, utilizamo-nos do termo “eu lírico” para diferenciar a voz identificável que se expressa em um poema específico (no caso, o “Eu” de “A flor e a náusea”) do sujeito empírico autor (no caso, o poeta Carlos Drummond de Andrade), mas fiquemos com a ressalva de que essa oposição é menos simples do que pode parecer e abre espaço para possíveis complexificações.

[2] O termo traduz-se do francês como “errante”, “vadio”, “caminhante”… Tornou-se um símbolo frequente e importante na literatura ocidental a partir dos séculos XIX e XX, muito devido ao poeta francês Charles Baudelaire. A figura do sujeito que anda por entre a grande cidade e pela multidão, observando-as e analisando-as, tornou-se um tipo literário da experiência do viver nos centros urbanos modernos, significando um misto de sentimento de alienação e de possibilidade de transformação da vida urbana em arte.

[3] O termo traduz-se do grego como “lugar”. Em teoria literária, serve para identificar um tema ou um conjunto de representações recorrentes em um determinado recorte espaço-temporal na literatura.

[4] Realiza o chamado enjambement, a separação de uma mesma frase em dois versos, brincando com as interrupções da leitura propiciadas pela forma visual do poema em versos.

[5] Na teoria freudiana das pulsões, o princípio de realidade identifica a necessidade de certo adiamento da gratificação direta que viria do princípio de prazer. Esse adiamento se dá como um “mal necessário” para o ingresso do sujeito na cultura, visto que, conforme a criança cresce, ela precisa se curvar cada vez mais às restrições da civilização para viver em sociedade.

[6] “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidas. Ela é o ópio do povo” (MARX, 2013, p. 151)

[7] Em Eros e civilização, Marcuse repensa criticamente as teorias de Freud e diferencia a necessidade básica de algum princípio de realidade para a vida social da manipulação desse princípio por uma classe dominante para gerar mais-repressão do que aquela suficiente para manter as relações sociais. O princípio de desempenho é como Marcuse especifica o princípio de realidade das sociedades industriais capitalistas que se pauta pela tentativa de monopolizar a libido humana para o trabalho alienado a partir de uma crescente racionalização da vida.

Referências

ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ______. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (obras escolhidas v.1). São Paulo: Brasiliense, 2012.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In:______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. In: ______. O ser e o tempo da poesia. 8ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Porto Alegre: L&PM, 2019.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: LTC, 2018.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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