Eles, os indesejáveis

Projeto Mímesis
5 min readJun 4, 2020

Eles são famosos pela violência. Eles são os responsáveis pelo clima de confronto nos domingos de clássico de futebol. Eles também compõem números significativos nas comunidades e periferias, onde desejosos de integração, distinção social e pertencimento, vestem as camisas de seus times e fazem do espaço urbano em dias de jogos, um espaço de confrontos e cantos. Eles quebram carros, ônibus, bancos, placas. Eles, inclusive, se matam. Eles são temidos pela imagem de violência que construíram, são os outros, os torcedores organizados, os indesejados.

Mas, qual o motivo de serem indesejados? Perturbam a ordem vigente, escancaram a violência estrutural que marca a nossa sociabilidade, relembram todos os finais de semana que nossas contradições de classe estão abertas, e que o problema da desigualdade, se não confrontado, resulta em invisibilizações e exclusões. São os grupos que lembram a todo momento que a cidade não é espaço de uma classe apenas, que nos finais de semana, no auge de seu divertimento e integração ao consumo, não querem ser lembradas do estado de exceção que é normalizado entre nós. Também escancaram todos os dias que, o projeto conciliatório, que pensava o futebol como o espaço ritual do encontro harmônico das classes, fracassou.

São indesejáveis também pelo Estado, afinal de contas, confrontam suas forças. Polícia Militar e Torcidas Organizadas não são antônimos, muito menos pares complementares. Antes de muita gente gritar o autoritarismo das forças policiais, esses indivíduos já a sofrem, dia após dia, jogo após jogo. Não foram poucas as vezes que falaram dessa tendência fascista nas instituições. Recebem murros, socos, tiros, até cavalos são normalizados como arma de combate ao torcedor organizado. O Estado brasileiro que tem classe e cor, legitimou durante muito tempo as arbitrariedades contra as torcidas.

Também são odiados pela mídia. Campanhas intensas de desinformação e desumanização dos torcedores organizados são comuns e incentivadas na TV, no rádio e nos jornais. Do alto de suas câmeras e microfones, com toda a pompa de intérpretes da realidade, âncoras bradam a necessidade de endurecimento das leis como forma de contenção da violência dessas massas. O vocabulário nesses programas, quando se referem aos torcedores organizados, variam numa frequência: às vezes animais; em outras, monstros, e por fim, a mais anacrônica e etnocêntrica de todas, bárbaros. Esses indesejados já foram taxados de muitas coisas, contra eles até a suspensão do Estado Democrático de Direito é válida. Afinal de contas, são os desumanos, os outros. Contra eles, vale tudo. Não são cidadãos, são Vândalos. Repito, são indesejáveis. Eles não são produto das nossas contradições, segundo esse argumento, são seres por essência, maus. Produto de suas próprias inclinações maldosas e desalmados, quando juntos, essa massa é danosa, irracional e por isso, indigna dos direitos.

Já teve quem estabelecesse, nesse momento em que segmentos das torcidas organizadas se colocam como puxadoras de um movimento unificado antifascista, que eles são o outro polo do autoritarismo brasileiro: “Torcidas organizadas são o bolsonarismo com uma camiseta de time: pregam o ódio ao rival, a desunião e a submissão do adversário[1]”. Em um momento onde as ruas pareciam hegemônicas, ocupadas por grupos radicais de extrema-direita, torcedores e participantes de torcidas organizadas resolvem organizar atos em defesa da democracia e confrontar ações de grupos autoritários. Tais iniciativas, deveriam ser incentivadas, nesse momento de escalada autoritária. Mas, ao que aparenta, boa parte dos setores “ilustrados”, ou não entenderam bem o perigo que se avizinha ou se encastelam no alto de seu preconceito de classe, recusando que venha de grupos indesejados o protagonismo da defesa da democracia.

Mas, perguntar não ofende, por que a tomada de iniciativa e o protagonismo das torcidas organizadas incomoda tanto? Primeiro, o preconceito racial e de classe. As torcidas organizadas são grupos atravessados pelas contradições da sociedade brasileira. Em sua maioria, são compostas por jovens pretos e periféricos, que dia após dia sofrem com a violência policial e cerceamento de direitos. Não vamos nos enganar, achando que há pouco tempo apenas o fascismo resolveu mostrar o rosto nas instituições. Ele é naturalizado faz é tempo. Torcedores organizados são alvos desse Estado de Exceção há anos, muito antes da ascensão do bolsonarismo. Racismo é a coisa mais comum nas abordagens das polícias militares, torturas e violência gratuita também. Quer ver a faceta “amiga” da PM? Vá em um jogo, veja a naturalização da coerção.

Segundo, esses grupos são muitas vezes lidos e compreendidos como todos homogêneos. Obviamente, são grupos que possuem, como toda a sociedade brasileira, suas facetas violentas, mas existe uma diferença enorme entre compreender as motivações e os dispositivos dessas violências e taxá-los de forma homogênea de violentos in natura. Ajudaria muito, o fato que nossos analistas aprendessem o quanto antes essas distinções. Compreender a estrutura das quais as torcidas organizadas são partes integrantes, é uma coisa, recorrer a explicações que são um misto de idealismo e punitivismo jurídico do XIX, é outra totalmente diversa. É até interessante, muitas vezes, ver acadêmicos repetindo mantras preconceituosos: são radicais, fanáticos, maus… a ladainha essencialista de sempre. Superem esse modelo explicativo, senhores. Torcida Organizada não é uma essência, muito menos blocos monolíticos. Sabemos que vocês conseguem, esforcem-se. Usem a dialética, não faz mal.

Mas, uma última questão se coloca: o que podemos aprender com eles, com os indesejáveis? Algumas coisas. A primeira de todas, da nossa parte, a humildade para ouvir. Em um momento como o atual, o conflito entre as forças não parece algo tão distante. Escutar quem há anos vive em situações de confronto e aprendeu a resistir e sobreviver, me parece sensato. É aí que esses grupos possuem muita experiência para falar e oferece-nos preciosas contribuições para possíveis enfrentamentos. Torcidas Organizadas são grupos que possuem, em sua formação, táticas de sobrevivência frente aos confrontos com forças policiais. São grupos que aprenderam a existir, mesmo com ataques da mídia, com ataques do Establishment político e jurídico. Usar esse aprendizado, nesse momento de confronto das forças, pode trazer grandes contribuições para o planejamento tático do movimento antifascista.

Outro saber que podemos e temos de aprender com as TO’s, é o do deslocamento pelas cidades em situação de conflitos. Esses grupos, possuem estratégias de dispersão em situações de confrontos que são um misto de conhecimento das zonas centrais do espaço urbano, alinhado com a mobilidade das pequenas células de seus componentes. Essa fórmula, até hoje utilizada pelas Organizadas, permite que em situações de enfrentamento com forças policiais, integrantes escapem rapidamente. Não é um manual do guerrilheiro, óbvio. Mas na atual situação, esse tipo de ajuda é válido.

Mas, o que se coloca no atual momento, e aí reside uma questão urgente: no enfrentamento ao autoritarismo pentecostal bolsonarista, estamos preparados para aprender com esses indivíduos? Ou faremos coro com a velha adjetivação, que insistindo em generalizar, distorcer e tratar esses grupos como monolíticos e homogêneos, montam estruturas de exclusão com o objetivo de legitimar a violência que imputam jogo após jogo, semana após semana. Taxar esses indivíduos com a violência simbólica, que vemos quase que rotineiramente nos jornais, disfarçada de imparcialidade, não vai ajudar. Ao contrário, reproduziremos todo o preconceito de classe e raça que se esconde nas “imparciais” manchetes dos jornais. Não nos esqueçamos que, quando parecia não haver enfrentamento ao bolsonarismo por parte dos setores progressistas foram eles que ousaram enfrentar e puxaram para si o protagonismo na luta contra os inimigos da democracia. Eles mesmos, os indesejáveis.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/confusao-com-torcidas-e-tudo-o-que-bolsonaro-queria-neste-momento.shtml

Dário Santos é Mestre em História pela UFPE e Professor.

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