O racismo ambiental e o universalismo europeu

Projeto Mímesis
8 min readFeb 4, 2021

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Recentemente, o Governador de Minas Gerais Romeu Zema (NOVO) ordenou a demolição de uma escola e o despejamento de uma comunidade quilombola que já estava estabelecida há 20 anos. A partir da madrugada do dia 12 de agosto de 2020 as 450 famílias do quilombo Campo Grande lutaram contra seu despejamento face a bombas, caveirões e helicópteros da Polícia Militar. Esta violência ocorreu no meio da pandemia do Covid-19 e de forma ilegal[1].

É ilegal porque a área prevista pela justiça para o despejamento já foi evacuada pelos moradores. A PM, agora, busca intimidar as famílias ao querer expulsá-las de seus lotes de terra que não estão previstos na decisão judicial. O quilombo Campo Grande é referência na produção agroecológica de café, sem uso de agrotóxicos. O despejamento ocorre pelo interesse de João Faria da Silva, o “rei do café”, um dos maiores produtores de café do Brasil, a Terra Forte. Enquanto o quilombo, produz e alimenta 450 famílias, o “rei do café” irá adicionar 52 hectares aos seus 6000. Isso sem comentar as diferenças da qualidade da produção nos seus impactos ambientais e de saúde.

No dia 17 de agosto de 2020 indígenas Kayapó fecharam a BR 163, no Pará[2]. Eles protestaram contra a invasão de seu território por garimpeiros e fazendeiros. A intimidação contra povos indígenas ocorre há mais de 500 anos no Brasil, e a atual modalidade de invasão de territórios, reconhecidos pela União como posse desses povos, é uma prática corrente no século XX.

Estes são apenas dois exemplos, porém, a Fiocruz possui um mapa de injustiças ambientais praticadas no Brasil, e apenas nesta plataforma há mais de 600 casos registrados[3]. Por que essas invasões ocorrem? Por que somos bombardeados com essas notícias diariamente?

Um conceito pertinente para pensar isso é o racismo ambiental. Para Lara Moutinho-da-Costa (2011), “No Brasil, o Racismo Ambiental diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas” (p. 112). O racismo ambiental se constitui em duas formas. A primeira, do não reconhecimento de atividades realizadas por estes grupos como forma legítima de relacionamento com o ambiente. A segunda, por receber o maior impacto derivantes da degradação e impactos ambientais.

E como estas duas vertentes funcionam?

A primeira, como as notícias que abrem o texto, são as invasões de territórios que acontecem pela negação dos direitos desses povos de ocupar um território por não se constituir da forma capitalista de relacionamento com a terra.

Isto acarreta na expulsão de populações dos territórios em que vivem há anos para a implantação de empreendimentos capitalistas ou unidades de conservação[4]. Isso acontece com as chamadas populações tradicionais[5].

Existe uma lógica capitalista de ocupação da terra, essas pessoas não se adequam a essa lógica, logo, devem ser substituídas para que haja uma ocupação “útil”. Por não obedecerem a uma ordem de propriedade privada, a propriedade coletiva e a territorialidade dos povos tradicionais não são enxergadas como legítimas.

Este tipo de pensamento não é novo. Foi sob este mesmo artificio que se justificou a tomada e invasão dos territórios indígenas durante a colonização. Como buscaremos argumentar aqui, este discurso está presente desde muito tempo no pensamento ocidental, e que desembocará no colonialismo.

Pensando no período da colonização da América, “A tarefa do homem, nas palavras do Gênesis (I, 28), era ‘encher a terra e submetê-la’: derrubar matas, lavrar o solo, eliminar predadores, matar insetos nocivos, arrancar fetos, drenar pântanos. A agricultura estava para a terra como o cozimento para a carne crua. Convertia a natureza em cultura. Terra não cultivada significava homens incultos. E quando os ingleses seiscentistas mudaram-se para Massachusetts [Estados Unidos], parte de sua argumentação em defesa da ocupação dos territórios indígenas foi que aqueles que por si mesmos não submetiam e cultivavam a terra não tinham direito de impedir que outros o fizessem” (Thomas, 2010, p. 18).

Vale ressaltar que isto se referia a terras não cultivadas nos valores europeus. Uma vez que diversas populações americanas praticavam a agricultura, havendo também uma grande diversidade da forma em que esta agricultura era conhecida e praticada. Desde a agricultura de coivara, realizada por povos de língua Tupi na Mata Atlântica, por exemplo, até os grandes terraços nas montanhas dos Andes.

Nos dias atuais existem diversas populações (indígenas, quilombolas, ribeirinhos), que possuem seu modo de vida estreitamente ligado com a natureza mais imediata de seu local de vida. São as populações tradicionais.

Para estas populações, o seu território, as relações ecológicas, fazem parte de sua produção econômica e cultural que permite seu viver. Isso ocorre através da agricultura, religiosidade, pelo conhecimento da fauna e da flora para uso alimentício, ritualístico ou de construção de ferramentas e edificações. Reiterando, estes aspectos estão estreitamente relacionados com o seu território, com o seu ambiente, são indissociáveis destes pois o conhecimento e a produção dizem respeito a este território que é único.

O modo de vida desses povos atua por outras racionalidades e outras territorialidades. Acaba que seus territórios são enxergados como vazios, ou sem uso, o que seria uma justificativa para a expulsão desses povos para a implantação de empreendimentos que sejam “úteis”.

Para ilustrar o que discutimos, segue um relato de uma conchera, catadora de conchas, no Equador:

Sempre estivemos dispostas a tudo. Mas agora, mais do que nunca, querem nos humilhar porque somos negros, porque somos pobres. Mas, ninguém escolhe a raça a qual pertence, tampouco não ter o que comer, ou ficar doente. Contudo, eu estou orgulhosa da minha raça e de ser conchera, porque é exatamente a minha raça que me fornece a força para lutar, para defender o que meus pais foram e pelo que meus filhos haverão de herdar; orgulhosa de ser conchera porque nunca roubei nada, nem nunca tirei o pão da boca de ninguém por dinheiro; e poque tenho vivido de cabeça erguida. Agora, estamos defendo algo que é nosso, nosso ecossistema; porque não somos ecologistas de profissão, mas somente gente que precisa continuar viva; porque se o manguezal desaparece, desaparece todo um povo, desaparecemos nós mesmos e, assim, não mais seremos parte da história de Muisne, pois não mais estaremos existindo […]. Não sei o que acontecerá conosco caso o mangue se acabe; comeremos restos em algum subúrbio de Esmeraldas ou de Guayaquil; seremos prostituas; não sei o que aconteceria conosco se o mangue desaparecer […]. O que sei é que eu aqui morrerei, defendendo o meu manguezal; mesmo que eu seja abatida, o meu mangue seguirá em pé e meus filhos estarão comigo; eu lutarei para oferecer-lhes uma vida melhor do que aquela que tenho desfrutado […]. Os camaroneiros [proprietários donos de fazenda de camarão], que não são donos das zonas nas quais estão assentados, impedem a passagem das concheras e dos carvoeiros, impedem que atravessemos os brejos, nos insultam e nos rechaçam a bala; pensamos então sobre o que irá acontecer caso o governo lhes entregue estas terras: haverão de colocar placas grandalhonas dizendo “Propriedade Privada” e até haverão de nos matar com as bênçãos do presidente (Martínez Alier, 2018, p. 125).

No segundo aspecto, observa-se que as populações mais afetadas pelas contradições ecológicas do capitalismo são justamente aquelas que vivem neste sistema sob forma racializada. Ou seja, populações que sofrem racismo também o sofrem ao ocuparem uma posição social e geográfica em que o ônus das externalidades recai sobre eles. Isso acontece nas populações que vivem nas periferias de grandes cidades ou em localidades interioranas.

Assim, quais são as pessoas que mais sofrem em decorrência de rompimentos de barragens? Com cidades inteiras sendo destruídas, como Brumadinho. Quais pessoas são retiradas de suas localidades de vida ribeirinha para a construção de hidrelétricas? Quais as populações mais assediadas por fazendeiros? Quais são as pessoas que moram nos locais de despejo de esgoto? Que estão mais suscetíveis a ter uma fábrica implantada em seu bairro? Que mais sofrem a poluição do ar e dos rios?

Vejamos um exemplo extraído do Mapa de Conflitos Ambientais, da Fiocruz. Sobre o processo de crescente favelização da cidade de São Paulo, os 1700 moradores da favela Paraguai, na zona leste da cidade, viveram expostos à substâncias tóxicas carcinogênicas, contaminantes orgânicos e metais pesados. Isso porque a favela foi construída sob uma antiga área industrial. A ocupação começou após o abandono desta área pelas empresas responsáveis, o que acarretou na ocupação sem o conhecimento desse potencial tóxico[6].

Isto também ocorre na escala global, através da transferência de mazelas ambientais para a periferia do sistema. Isso permite que haja um “desenvolvimento sustentável” nos países do centro já que a insustentabilidade é exportada para a América Latina, Ásia e África.

Na África do Sul, grupos ambientalistas e residentes “Protestavam contra tal ‘imperialismo do lixo’ ou ‘colonialismo tóxico’, indagando: por que a Thor, uma empresa britânica, decidiu construir a maior planta de reciclagem de resíduos de mercúrio do mundo na fronteira do KwaZulu, numa parte remota da África? Por que não foi construída num local mais próximo das fontes de geração de resíduos de mercúrio. Como nos Estados Unidos ou na Europa?” (Martínez Alier, 2018, p. 249).

Assim, essas injustiças ocorrem justamente porque a população em que o ônus recai é racializada. Ela toma forma na implantação de empreendimentos de graves impactos ambientais e de saúde em regiões de população racializada. Também toma forma na imposição de uma razão instrumental, seja capitalista ou técnico-cientifica, frente às formas de vida de povos tradicionais.

Como tentamos argumentar, o racismo ambiental é uma problemática que ocorre não apenas nos espaços rurais, mas ocorre também nos meios urbanos. Questões como saneamento básico, acesso à água, segurança nas estruturas arquitetônicas, proteção a enchentes e outros problemas ambientais afetam sobretudo populações marginalizadas por razão racial.

A injustiça ambiental é feita pelos maiores produtores de poluição, a Europa, sobre as maiores vítimas desta poluição, o sul global. O mesmo ocorre na escala do Brasil. Enquanto a população que mais polui e consome possui as melhores condições de defesa contra desastres ambientais, a população que menos consome e menos polui é aquela que sofre mais. As mazelas ambientais propagadas pelo modelo capitalista de produção recaem justamente sobre as populações marginalizadas racialmente.

Referências bibliográficas.

MOUTINHO-DA-COSTA, Lara. Territorialidade e racismo ambiental: elementos para se pensar a educação ambiental crítica em unidades de conservação. Pesquisa em Educação Ambiental, vol. 6, n. 1, pp. 101–122, 2011.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças e atitudes em relação às plantas e aos animais (1500–1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

MARTÍNEZ ALIER, Joan. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2018.

[1] https://www.brasildefato.com.br/2020/08/14/pm-atira-bombas-contra-acampados-do-mst-que-lutam-ha-50-horas-contra-despejo-em-mg

[2] https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/08/17/indigenas-kayapos-fecham-trecho-da-br-163-para-pedir-retomada-de-fiscalizacoes-em-terras-indigenas.ghtml

[3] http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/

[4] Não queremos trazer neste texto uma afronta às Unidades de Conservação da Natureza no sentido de generalizar casos de racismo ambiental que possam ocorrer com sua implantação. Vale salientar que o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação) possui uma ampla gama de categorias para as Unidades de Conservação, havendo a possibilidade de uma confluência de interesses e de UCs que permitam o modo de vida tradicional.

[5] Povos tradicionais são definidos para fins legais como: “Povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (inciso I Art. 3º Decreto 6.040 / 2007).

[6] http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/sp-comunidade-com-1700-pessoas-viveram-expostas-as-substancias-toxicas-carcinogenicas-contaminantes-organicos-e-metais-pesados-que-podem-afetar-a-saude-especialmente-de-criancas/

Texto por Mateus Ferraz, graduando em História pela UFPE, professor de História no Projeto Rumo à Universidade e bolsista Pibic/CNPq pela Fundação Joaquim Nabuco.

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